Elisabete Carrara-Angelis luta pela diversidade da voz

Comecei a trabalhar no A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, em 1996. Há quase 30 anos, portanto. Mas a minha primeira lembrança desse hospital, assim como meu interesse pela reabilitação da voz em pacientes oncológicos, vem de muito antes.

Nasci na capital paulista e cresci no bairro do Campo Belo. Minha mãe matriculou os quatro filhos em aulas de violão, mas só eu segui estudando o instrumento. Cheguei a me formar em um curso livre de violão clássico. Aos 9 anos, visitei o A.C.Camargo pela primeira vez, para tocar violão em uma apresentação natalina para as crianças que estavam internadas. Gosto de pensar que esse episódio foi a semente de um projeto que criaria anos depois: o coral Sua Voz.

O coral surgiu em 2011, em uma data também próxima ao Natal. Toquei violão na primeira apresentação e não parei mais. O grupo é formado por pacientes do A.C.Camargo em processo de reabilitação. Hoje, com 23 cantores, de vários gêneros e diversas idades, nosso coral busca ser um grupo de apoio para os pacientes e disseminar a ideia da diversidade da voz. Além disso, é um canal para falar sobre a prevenção do câncer, principalmente o de laringe.

Tumores na cabeça e no pescoço podem afetar funções como respirar, comer e falar. Em alguns casos, o tratamento exige a remoção parcial ou total da laringe (o que inclui a retirada das cordas vocais) e da língua. Com a fonoterapia, essas pessoas voltam a se comunicar, mas com a voz um pouco diferente, geralmente mais grave. Por conta disso, muitas se isolam do convívio social. Foi esse o ponto de partida para a criação do coral. A música permite exercitar a melodia e as pausas respiratórias, aspectos importantes no processo de reaprendizagem da fala dos pacientes oncológicos.

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Arquivo pessoal Carrara-Angelis com o coral Sua Voz, na Sala São Paulo, em 2021Arquivo pessoal

Esse é um tema pelo qual me interesso desde a graduação em fonoaudiologia. Estudei na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo [Unifesp] e, antes de terminar o curso, em 1988, fiz um estágio com pacientes em reabilitação de câncer de cabeça e pescoço. Era o que pretendia estudar no mestrado, mas na época os programas de pós-graduação em oncologia eram exclusivos para médicos. Então, segui estudando os distúrbios da voz, só que no campo da neurologia. No mestrado e no doutorado, concluídos, respectivamente, em 1994 e em 2000, também na Unifesp, analisei os distúrbios da voz e da deglutição em pacientes com a doença de Parkinson. Nesse período, nasceu meu primeiro filho, Eduardo.

Logo que terminei o doutorado, fui chamada para integrar a Comissão de Pós-graduação do A.C.Camargo. Desde então, atuo também como docente e na orientação de pesquisas nos programas de mestrado e doutorado desse centro médico.

Pouco depois, em 2004, tive minha segunda filha, Gabriela, que nasceu com a síndrome de Down. Minha trajetória de pesquisadora me ajudou a lidar com um quadro de apraxia de fala que ela apresentava, a intervir e a repassar esse conhecimento para outras pessoas. Isso porque a maioria dos clínicos naquela época considerava que a apraxia afetava apenas os adultos. Em crianças com síndrome de Down era comum associar a dificuldade de articular os sons com algum tipo de deficiência intelectual. Ao acompanhar o desenvolvimento da minha filha, questionei esse paradigma. Costumo dizer que se não tivesse uma mãe fonoaudióloga e cientista, Gabriela não falaria.

Hoje o conceito de apraxia de fala na infância está consolidado. Em 2007, a Sociedade Americana de Fonoaudiologia [Asha] adotou o termo CAS [Childhood Apraxia of Speech], que abrange todas as apraxias que se manifestam na infância como um distúrbio neurológico, no qual a precisão e a consistência dos movimentos relativos à fala estão prejudicados. Pelo fato de o distúrbio estar ligado a uma questão motora da fala, a fonoterapia ensina a produzir o som das letras, em um processo parecido com a terapia de indivíduos que tiveram que retirar a laringe ou a língua. Foi o que fizemos com a Gabriela e obtivemos ótimos resultados.

Para ajudar outras famílias que enfrentavam questões parecidas, criei em 2010 o projeto Fala Down no Hospital Infantil Darcy Vargas, vinculado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e que atende pelo Sistema Único de Saúde [SUS]. Por quase 10 anos atendemos crianças com apraxia da fala e orientamos seus responsáveis. O projeto foi interrompido pouco antes da pandemia, em 2019.

Nesse mesmo ano, Eduardo, à época com 20 anos, foi diagnosticado com um tumor no cérebro. Em poucos meses, ele entrou em coma. No entanto, para que pudesse receber tratamentos mais eficazes, Eduardo teria que estar consciente. Então, passei a estudar técnicas de neuromodulação. Propus à equipe médica do A.C.Camargo, onde ele ficou internado, que adotasse o procedimento para ajudar no processo de recuperação do meu filho. A resposta foi muito positiva e, ao longo dessa fase do tratamento, percebi o potencial da neuromodulação na fonoaudiologia.

Eduardo faleceu em novembro de 2019. Após um período afastada do trabalho e da pesquisa, a paixão pela voz prevaleceu. Em 2021, depois de fazer uma formação no Núcleo de Assistência e Pesquisa em Neuromodulação [Rede Napen], em São Paulo, passei a utilizar a estimulação elétrica transcraniana [TDCS], uma das técnicas da neuromodulação, tanto na reabilitação de pacientes oncológicos quanto em crianças com síndrome de Down e com transtorno do espectro autista.

No procedimento, que dura 20 minutos, dois eletrodos são colocados na cabeça do paciente. A estimulação provocada pela corrente elétrica de baixa intensidade cria sinapses que auxiliam um indivíduo sem língua ou sem as cordas vocais a reaprender a falar utilizando o esôfago, órgão do aparelho digestivo. É como se o corpo se reinventasse. Recentemente, finalizamos um projeto de pesquisa sobre isso no A.C.Camargo. Testamos o uso de neuromodulação em pacientes que precisaram remover a língua para tratar o câncer. Um dos casos foi descrito em artigo publicado no ano passado.

Atualmente, estou finalizando o projeto de um curso de mestrado na área de neuromodulação em síndrome de Down, em parceria com o Programa de Pós-graduação em Neurociência e Cognição da Universidade Federal do ABC [UFABC]. Além disso, estou elaborando com a Rede Napen um projeto para disponibilizar esse tratamento via SUS. A neuromodulação tem sido utilizada desde a década de 1960 em áreas como saúde mental e fisioterapia, mas na fonoaudiologia é algo novo. Há muitos desafios, mas com excelentes perspectivas.

A reportagem acima foi publicada com o título “O coro da vida” na edição impressa nº 350, de abril de 2025.

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"Pai orgulhoso do Davi e da Leonor, casado com a Roberta, minha parceira de vida e meu maior apoio. Como conservador, acredito profundamente na importância da justiça e do reconhecimento do esforço individual, valores que considero fundamentais para construir uma vida íntegra e significativa. Minha fé evangélica é o alicerce que sustenta minha existência, pois acredito que Deus é a razão e a fonte de tudo, guiando meus passos e dando propósito a cada escolha que faço. Vivo para honrar meus princípios e para cultivar uma vida baseada na verdade, na ética e no amor ao próximo, sempre buscando ser um exemplo para minha família e comunidade."

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