Mata Atlântica perde área de floresta madura maior que a cidade de São Paulo

Douglas MagnoDesmatamento em trecho de Mata Atlântica em Setubinha, Minas GeraisDouglas Magno
Na Mata Atlântica, o bioma brasileiro mais devastado desde o século XVI, grandes áreas de floresta madura, preservada há mais de meio século, continuam sendo derrubadas para fins agropecuários. Entre 2010 e 2020, foram suprimidos cerca de 186,2 mil hectares desse tipo de vegetação, que concentra maior diversidade biológica e estoca mais carbono retirado da atmosfera que os trechos mais novos de Mata Atlântica. A área desmatada no período é quase 20% maior que o município de São Paulo e representa 1,08% das florestas maduras remanescentes do bioma.
Os dados constam de um estudo publicado em fevereiro na revista Nature Sustainability, feito por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Universidade de São Paulo (USP) e Fundação SOS Mata Atlântica, organização não governamental (ONG) que monitora o bioma desde a década de 1980. Atualmente, 24% da área original do bioma apresenta cobertura vegetal, da qual cerca de metade é constituída de florestas maduras, que existem há mais de 50 anos sem distúrbios aparentes causados por atividades humanas.
Por meio de imagens de satélite de alta resolução, os pesquisadores analisaram 14,4 mil polígonos de desmatamento de florestas maduras, mapeados entre 2010 e 2020. Para isso, consultaram bases de dados sobre desmatamento, conversão do uso da terra e situação fundiária, além de identificar se os terrenos eram privados ou públicos.
“Os dados de desmatamento já existiam. O que não existia, e deu bastante trabalho, foi analisar a transformação de cada polígono ao longo de 10 anos para toda a cobertura de floresta madura nos 17 estados em que há Mata Atlântica”, explica a ecóloga Silvana Amaral, do Inpe, primeira autora do artigo. Segundo ela, a maior parte das áreas de floresta antiga do bioma está dentro de propriedades privadas, que concentram 73% do total dos 186,2 mil hectares desmatados no período. Quase 50% desse número corresponde a áreas menores que 6 hectares – 1 hectare é equivalente a 10 mil metros quadrados (cerca de um campo e meio de futebol).
Nas áreas privadas, o uso agrícola dominou a transformação da terra em mais de 70% dos casos, com destaque para a implantação de pastos, de silvicultura – o cultivo de florestas para fins comerciais – e de lavouras temporárias. A segunda maior fatia do desmatamento ocorreu em lugares com posse de terra incerta, totalizando 25,1 mil hectares. Em seguida, respondendo por 8% do desmatamento de florestas maduras, cerca de 14,6 mil hectares, surgem as terras indígenas, quilombolas e áreas protegidas, como reservas, parques e estações ecológicas. Nesses locais, segundo os autores do trabalho, o corte da vegetação costuma ser feito por pessoas de fora dessas comunidades.
Embora não tenham conseguido confirmar, os pesquisadores destacam que é quase certo que o desmatamento de florestas maduras ocorreu de forma ilegal. A Mata Atlântica é o único bioma brasileiro que conta com uma lei de proteção, a de nº 11.428, de 2006, que proíbe a conversão do uso da terra para fins particulares. “A lei permite desmatamento em situações excepcionais e de interesse social, como construções de infraestrutura feitas pelo Estado”, detalha Luís Fernando Pinto, diretor-executivo da SOS Mata Atlântica e um dos autores do estudo. “O grande vetor de expansão é principalmente para a agropecuária brasileira. E expansão de área agrícola configura uso privado.”
Duas áreas críticas
Os dados também indicam que o desmatamento está muito concentrado em quatro estados: Bahia e Minas Gerais, responsáveis por 50% da perda, além de Paraná e Santa Catarina, que representam outros 16%. Esses territórios também formam os dois polos mais críticos encontrados pelo estudo, cada um com características muito próprias de desflorestamento.
Na divisa entre Bahia e Minas, a derrubada da floresta ocorreu de forma similar em fazendas pequenas, médias e grandes, enquanto no Sul a proporção maior (47%) foi encontrada em propriedades pequenas. O estudo também menciona outra mancha de desmatamento no litoral da Bahia, responsável por 5% do total geral.
“Na porção entre Nordeste e Sudeste, a região apresenta mata seca e decidual, ou seja, é uma área de transição entre Mata Atlântica e Cerrado. Possivelmente, nesses lugares, há confusão se a floresta está ou não protegida pela lei da Mata Atlântica”, comenta o biólogo Jean Paul Metzger, da USP, que também assina o trabalho. De acordo com ele, grande parte da terra virou pasto e reflorestamento de eucalipto. “No Sul, o padrão é diferente. As matas de araucária, que fazem parte da Mata Atlântica, são convertidas em uso agrícola, em particular em pequenas propriedades”, diz Metzger, um dos coordenadores do Programa Biota FAPESP.
Por mais que as áreas protegidas e de povos tradicionais tenham registrado menos polígonos desmatados, o artigo alerta que, também nesses locais, há algumas regiões mais problemáticas, que requerem a atenção do poder público. Esse é o caso de certas áreas indígenas na Bahia e no Paraná, de quilombos no Paraná e em Pernambuco, além de terras para uso sustentável, como reservas extrativistas, localizadas em Sergipe e em Goiás.
Toda a análise do estudo só foi possível porque o Inpe e a Fundação SOS Mata Atlântica monitoram os remanescentes florestais do bioma desde 1985, quando o total desflorestado anualmente passava dos 100 mil hectares. O dado mais recente de 2024, ano fora do período analisado pelo artigo, indica uma perda de 14,6 mil hectares de floresta madura. Nos últimos anos, a tendência é de queda no desmatamento, com alta taxa de regeneração florestal – mais de 700 mil hectares entre 2011 e 2015.
No entanto, o trabalho salienta que as matas secundárias e novas, provenientes de regeneração vegetal e projetos de restauração, têm baixa biodiversidade e pouca biomassa. Segundo estudo publicado em 2019 na revista Science Advances, feito por pesquisadores do exterior e brasileiros, matas neotropicais em processo de regeneração, como a Atlântica, podem demorar mais de um século para voltar a apresentar sua riqueza original de espécies. “Já a recuperação de boa parte de sua biomassa, cerca de três quartos, pode ocorrer em um prazo de 20 e 30 anos”, comenta Metzger.
O desmatamento também altera outros parâmetros locais. “A supressão de florestas maduras leva à perda de serviços ecossistêmicos, como a regulação do clima e a manutenção do estoque de carbono”, avalia o gestor ambiental Paulo Molin, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que não participou do estudo. Para frear o desmatamento, o artigo recomenda reforçar os instrumentos legais já existentes, como a própria lei de 2006, a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (também conhecida como o novo Código Florestal) e a oferta de pagamentos ambientais e financiamentos agrícolas para quem cumpre a legislação. “Outros estudos mostram que esses instrumentos, quando combinados, potencializam a restauração e a conservação ambiental. Estamos dando um alerta, mas existe uma saída para alcançar o desmatamento zero na Mata Atlântica”, conclui Metzger.
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