Revistas científicas sob artilharia pesada
A revista Environmental Health Perspectives, uma das mais influentes do mundo na área da saúde ambiental, suspendeu o recebimento de novos estudos para publicação em resposta aos cortes no orçamento da ciência que vêm sendo implementados pelo governo dos Estados Unidos. O periódico de acesso aberto não cobra taxas nem dos leitores nem dos autores de artigos – isso era possível graças a seu vínculo com o Instituto Nacional de Ciências da Saúde Ambiental, um dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, patrocinador do título desde a sua criação, em 1972.
Os editores decidiram suspender as atividades porque não sabem se haverá recursos para renovar contratos com fornecedores – o governo Trump propôs que o orçamento dos NIH seja reduzido de US$ 48 bilhões, em 2025, para US$ 27 bilhões, em 2026. A pausa atinge um título irmão, o Journal of Health and Pollution, editado desde 2011. Duas revistas dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) também podem deixar de circular, caso uma proposta de corte discutida na instituição seja aprovada. Uma delas é o Emerging Infectious Diseases, que divulga relatórios sobre ameaças de doenças infecciosas que são referência no mundo inteiro.
Intimidações do governo também preocupam a comunidade científica. Periódicos médicos de prestígio como The New England Journal of Medicine (NEJM), Jama, Chest Journal e Obstetrics and Gynecology receberam em abril uma carta de Edward R. Martin Jr., procurador federal interino no distrito de Columbia nomeado pelo governo Trump, sugerindo que estariam tomando partido em debates acadêmicos, o que feriria a legislação, e exigindo respostas a um conjunto de perguntas, tais como “aceitam submissão de artigos com pontos de vista concorrentes?” ou “são transparentes quanto à influência de apoiadores, financiadores e anunciantes?”.
O procurador também quis saber qual foi a influência dos NIH na produção dos artigos. A Obstetrics and Gynecology, editada pelo Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia, há tempos vem sendo alvo de grupos conservadores por publicar artigos sobre programas de saúde reprodutiva ou com foco em diversidade e gênero, que resultam de projetos com financiamento federal.
Eric Rubin, editor do NEJM, definiu como “ameaçador” o conteúdo da carta que recebeu. “Ficamos preocupados porque havia perguntas sugerindo que poderíamos ser tendenciosos. Não somos. Dedicamos muito tempo escolhendo os artigos certos para publicar e tentando transmitir a mensagem correta”, disse, segundo a organização de mídia NPR. A revista respondeu às indagações do procurador com uma declaração que contesta as insinuações e evoca o dispositivo da Constituição dos Estados Unidos que garante a liberdade de expressão e de imprensa: “Usamos rigorosos processos editoriais e de revisão por pares para garantir a objetividade e a confiabilidade das pesquisas que publicamos. Apoiamos a independência editorial das revistas médicas e seus direitos à liberdade de expressão garantidos pela Primeira Emenda”.
O bioquímico Jeremy Berg, ex-editor da Science, sugere que a estratégia do governo é forçar as revistas a publicarem artigos alinhados a suas convicções, em temas como vacinas e mudanças climáticas, mesmo que sejam de má qualidade. É certo que a carta do procurador está alinhada com o discurso de autoridades da saúde do governo Trump. O atual diretor dos NIH e pesquisador da Universidade Stanford, o médico e economista Jay Bhattacharya, foi bastante criticado durante a pandemia por combater o isolamento social – ele propôs deixar o vírus se espalhar naturalmente – e a obrigatoriedade do uso de máscaras. Recentemente, fundou uma revista, o Journal of the Academy of Public Health, aberta a estudos com avaliações alternativas sobre a pandemia, como um artigo, assinado pelo próprio Bhattacharya, que aponta falhas de planejamento nos ensaios clínicos sobre vacinas contra a Covid. Robert Kennedy Jr., secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, já vinha ameaçando processar periódicos médicos, que acusa de agirem em conluio com empresas farmacêuticas. Em um programa de televisão de que participou em 2024, Kennedy disse que o NEJM “mentiu para o público” e promoveu retratações de artigos que continham “ciência real”.
Na avaliação de Amanda Shanor, jurista da Universidade da Pensilvânia, as informações divulgadas em publicações médicas respeitáveis são amplamente protegidas pela Constituição e amparadas pelos mesmos direitos robustos que se aplicam aos jornais. Ela disse ao The New York Times que a carta do procurador “parece querer gerar um tipo de medo e de apreensão que afetarão a liberdade de expressão das pessoas” – isso sim, segundo afirma, cria “uma preocupação constitucional”.
O assédio do procurador causou perplexidade entre cientistas. “Os pesquisadores criticam uns aos outros o tempo todo e os periódicos estão cheios de divergências e reinterpretações de dados”, disse à revista Science o psicólogo Marcus Munafò, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, um estudioso da integridade da pesquisa. Ele reconhece que a ciência pode ter falhas e falta diversidade política em certos ambientes acadêmicos. “Mas os cientistas estão sempre tentando determinar o que é verdadeiro para permitir o avanço do conhecimento. O que os formuladores de políticas decidem fazer com essas evidências é um assunto à parte.”
As ações do governo Trump não encontraram eco nem entre quem se queixa da falta de suporte a visões minoritárias na ciência. Para a socióloga Nicole Simovski, que é diretora da Heterodox Academy, entidade sem fins lucrativos que defende a garantia da diversidade de pontos de vista nas universidades, afirmou, no site da instituição, que há várias iniciativas sendo testadas para dar voz a opiniões científicas alternativas, como a criação de revistas dedicadas a tópicos relegados pelo mainstream e até um projeto que propõe cooperação entre pesquisadores com abordagens teóricas e ideológicas conflitantes a fim de produzir resultados mais precisos e livres de vieses ou ambiguidades (ver Pesquisa FAPESP nº 335). Essas novas ações, ela ressalta, são conduzidas por especialistas que buscam identificar problemas e resolvê-los com seus pares acadêmicos, o que é muito diferente de “intervenções governamentais feitas por não especialistas para impor pontos de vista em publicações científicas”.
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