Sequenciamento de DNA antigo reforça ancestralidade dos Picuris
Representantes de Picuris Pueblo, no Novo México, Estados Unidos, conseguiram uma forte aliada para documentar sua ancestralidade: a genômica. Lideranças desse povo indígena norte-americano queriam demonstrar sua afiliação à população antiga que vivia na região de Chaco Canyon, distante 275 quilômetros (km) a leste de onde atualmente vivem. Eles pretendem pleitear o direito de opinar sobre os usos da área do Parque Nacional Histórico da Cultura Chaco, para eles território ancestral sagrado. A solução surgiu ao verem uma palestra em vídeo, da série TEDx, do geneticista dinamarquês Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca. O pesquisador contava como o DNA antigo pode ser uma ferramenta para revelar a ancestralidade de povos e a história da emigração pelos continentes que permitiu a colonização das Américas. O resultado dessa parceria está na edição desta semana da revista Nature.
No vídeo, de 2016, o dinamarquês reconhecia a importância dos achados arqueológicos na construção desse conhecimento, encontro de disciplinas que também faz parte da história do estudo publicado agora. As lideranças Picuris Craig Quanchello e Richard Mermejo procuraram o arqueólogo Michael Adler, da Universidade Metodista do Sul, no Texas, que ganhou a confiança desse povo ao longo de décadas de trabalho, com o pedido de que fizesse a ponte com o geneticista europeu. Foi fácil, graças ao colega David Meltzer, cuja sala é próxima à de Adler na universidade, e que mantém parceria com Willerslev. Todos eles trabalharam juntos e são coautores do artigo, embora Mermejo tenha morrido em janeiro de 2024, sem ver os resultados finais.
“Os Picuris chegaram com a ideia montada”, conta o geneticista brasileiro Thomaz Pinotti, pesquisador em estágio de pós-doutorado no grupo de Willerslev e primeiro autor do artigo. À época, dois anos atrás, ele estava em pleno doutorado, em titulação conjunta entre a Universidade de Copenhague e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), justamente sequenciando DNA antigo. Pinotti assumiu então a frente do trabalho, que poderia ser interrompido a qualquer momento a critério dos indígenas. “A cada passo, apresentávamos os resultados a eles”, conta. Quando foi a Picuris Pueblo expor as conclusões, ele sentia que não podia cometer erros na apresentação – não só por ser uma plateia sem treino científico, mas também devido à importância que o trabalho tinha para eles. “Depois disso, a defesa de doutorado foi fácil”, ele brinca.
Uma coincidência crucial foi Adler ter encontrado um armário com ossadas Picuris escavadas nos anos 1960 pelo colega Herbert Dick, que, ao morrer, deixou material de pesquisa do qual os outros pesquisadores não tinham consciência. Quando Adler tentou devolver ao povo de origem para que os restos mortais de ancestrais voltassem a ser sepultados, como exige a lei norte-americana, as lideranças já tinham o projeto em mente e pediram ao arqueólogo que mantivesse a guarda temporária do material, para servir às análises genéticas. “Dessas ossadas Adler e Meltzer nos enviaram dentes e petrosos, que são os melhores para a extração de DNA”, explica o brasileiro. O petroso fica na região temporal do crânio, perto do ouvido, e é o osso mais denso do corpo humano. O grupo dinamarquês obteve, assim, o sequenciamento genético completo de 16 indivíduos antigos, assim como de 13 habitantes atuais de Picuris Pueblo, cujas amostras de saliva foram coletadas por iniciativa deles próprios. Esses genomas foram comparados a sequências de 5.500 indivíduos do mundo todo, entre eles representantes de 300 povos indígenas do continente americano.
A semelhança genética entre os Picuris atuais e os antigos, sepultados entre mil e 500 anos atrás, foi enorme. “Nunca vi um caso de correspondência tão grande”, afirma Pinotti. É uma confirmação eloquente do que já se sabia pela história oral e nacional: o povoado atual foi fundado em 900. É a povoação humana contínua mais antiga dos Estados Unidos, apesar da forte redução populacional (cerca de 85%) após a chegada dos espanhóis. A violência colonial também deixou buracos em sua história oral, pois os ritos e as crenças religiosas foram proibidos e as crianças enviadas para colégios internos indígenas, perdendo o contato diário com os mais velhos. A história mais antiga, que se refere à região de Chaco Canyon, ficou com falhas.

kojihirano / istockphoto.comO Parque Nacional Histórico da Cultura Chaco preserva remanescentes do povoamento demolido pelos colonizadores espanhóiskojihirano / istockphoto.com
Os povos que viviam em Chaco Canyon podem ter emigrado em consequência de uma aridez crescente que impossibilitou a agricultura por ali, ou por algum motivo mais difícil de inferir a partir de indícios materiais. Antes disso, a cultura local envolvia construções monumentais, conhecidas como Grandes Casas, que chegavam a três andares. Esses povoados foram demolidos pelos colonizadores europeus e hoje restam vestígios. Pinotti e colegas também compararam as sequências genéticas que produziram a outras, disponíveis em bancos públicos, obtidas de ossadas escavadas em um desses povoados ancestrais. É esse o resultado mais importante do estudo: nenhum outro povo já amostrado é mais aparentado ao povo antigo de Chaco Canyon do que os Picuris. Essa conclusão não exclui, porém, a afiliação de outros povos, o brasileiro ressalta. “Foi exatamente o resultado que os Picuris esperavam.”
“Nós já tínhamos ouvido de nossos anciãos”, afirmou o vice-governador Picuris Craig Quanchello a Pesquisa FAPESP durante coletiva de imprensa on-line. “Sempre soubemos que tínhamos uma forte conexão com Chaco Canyon, mas agora isso está publicado nos termos que eles entendem”, completou, referindo-se aos não indígenas. Com isso, a expectativa é ter mais voz contra as intenções de explorar recursos naturais em terras tradicionais. A preocupação dos Picuris agora é garantir a segurança desses dados por meio da tecnologia. Agora fica a cargo dos indígenas obter o reconhecimento oficial de que seus ancestrais estão naquele solo e têm direito a contribuir para os rumos do território. “Temos que parar de fazer política indígena por eles”, pondera Pinotti. “Eles decidem o que querem e a ciência pode ajudar.”
Na entrevista coletiva, o arqueólogo Michael Adler assegurou que as contribuições da genética têm o potencial de transformar a arqueologia. A relação entre os geneticistas e os indígenas, porém, exige cuidados. “A genética é um componente da ancestralidade no tempo e no espaço, mas ela não define a identidade, que precisa ser respeitada como uma força poderosa.” O dinamarquês Eske Willerslev avaliou que o controle dos Picuris sobre o processo de pesquisa e sobre os dados foi fundamental na construção da confiança nessa parceria, o que deve vir a ser um modelo para projetos futuros. “Pode ser um bom momento para começar a dar ouvidos ao conhecimento tradicional”, completou o geneticista mexicano Víctor Moreno-Mayar, da Universidade de Copenhague e um dos coordenadores do estudo.
Para o geneticista Fabrício Santos, da UFMG, coorientador de Pinotti, a experiência representa uma nova fase dos estudos genéticos com indígenas. Décadas atrás os projetos eram repletos de conflitos porque as coletas de material genético serviam a propósitos dos pesquisadores sem a compreensão dos indígenas estudados. Ele conta que outros povos, como os Uro, que constroem ilhas flutuantes no lago Titicaca, no Peru, se beneficiaram da genética para seu reconhecimento, como mostrou trabalho de seu grupo em 2014. Ele celebra o encontro da linguística, da arqueologia e da antropologia com a genética, que permite chegar a novos entendimentos ao mesmo tempo em que se repensa a ética desses estudos.
“É uma ciência não extrativista”, define o arqueólogo Eduardo Góes Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), que não participou do estudo. Sua instituição inaugurou em 2022 o Laboratório de Arqueogenética e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE), liderado pelo arqueólogo André Strauss, com capacidade de realizar estudos desse tipo. Neves lidera o projeto Amazônia Revelada, que também tem foco em colaboração com povos indígenas e tradicionais desde o planejamento até a publicação dos resultados. “A participação orgânica das comunidades pode mudar a maneira como se faz pesquisa científica.” Para ele, o artigo do grupo de Willerslev representa um caminho sem volta na inclusão dos povos originários, e a pesquisa colaborativa, ele ressalta, traz mais qualidade.
Artigo científico
PINOTTI, T. et al. Picuris Pueblo oral history and genomics reveal continuity in US Southwest. Nature. 30 abr. 2025.
Share this content: